UM POUCO MAIS SOBRE A HISTÓRIA DA UESC...



Parte do discurso proferido pelo Prof. Ruy Póvoas, sobre a história do Curso de Letras da UESC, durante a solenidade de posse de nome do Centro Acadêmico de Letras Prof. Ruy Póvoas e lançamento da Revista Literata, evento organizado pelo Centro Acadêmico de Letras Prof. Ruy Póvoas (CALPRP) e Centro de Estudos Portuguese Hélio Simões (CEPHS).
O Prof. Ruy Póvoas, atualmente coordenador do KÀWÉ — Núcleo de Estudos Afro-Baianos Regionais, é escritor e foi um dos professores fundadores do curso de Letras na Universidade Estadual de Santa Cruz, tendo sido diretor de Departamento e membro do movimento estudantil da FAFI. Leia um excerto do discurso proferido por ele na solenidade supracitada:


A trajetória do atual Curso de Letras da UESC inicia-se com a Faculdade de Filosofia de Itabuna ‒ FAFI, autorizada a funcionar em cinco de maio de 1960, cuja primeira sede localizou-se na Escola Ação Fraternal de Itabuna. O início do seu funcionamento data de setembro de 1961, com três cursos: Letras, Filosofia e Pedagogia, segundo Portaria n.º 196, do MEC. Sua concretização deveu-se a Dona Ana Amélia Amado, mantenedora da Ação Fraternal de Itabuna. Posteriormente, a Faculdade de Filosofia de Itabuna foi assumida pelo Município de Itabuna, até a sua incorporação à Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna – FESPI, em 1974.
No início, o Curso de Letras tinha duas habilitações básicas: Letras Neolatinas e Letras Anglo-germânicas. Através da primeira, além das disciplinas do currículo mínimo (Língua Portuguesa, Linguística, Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira e disciplinas pedagógicas), cursava-se Língua e Literatura Latina, Espanhola, Francesa e Italiana. Através da segunda habilitação, além das já mencionadas disciplinas do currículo mínimo, cursava-se também Língua e Literatura Inglesa e Alemã. Em 1963, depois da reforma universitária, reformularam-se essas habilitações, transformando-as em cursos de Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e uma Língua Estrangeira Moderna. No caso, a antiga Faculdade de Filosofia de Itabuna optou por Inglês, Francês e Espanhol, e ficava a critério do aluno qual dessas línguas estrangeiras cursar.
Em 1972, a Fundação Santa Cruz – FUSC constitui-se como entidade de direito privado, com as finalidades de agregar, num campus universitário, as Faculdades Isoladas de Ilhéus e Itabuna, preparando a semente para a criação da futura Universidade de Santa Cruz. Nesse período, iniciam-se as obras do referido campus, no km 16 da Rodovia Ilhéus-Itabuna. Não foi possível, porém, a imediata criação da Universidade. Instituiu-se, então, a FESPI, resultante da unificação da Faculdade de Direito de Ilhéus – autorizada a funcionar em 19 de março de 1960 –, da Faculdade de Filosofia de Itabuna e da Faculdade de Economia de Itabuna – esta última autorizada a funcionar em oito de agosto de 1970. A FESPI foi reconhecida pelo Conselho Federal de Educação – CFE, através do Parecer 1.637/74, de cinco de abril de 1974.
 A FESPI manteve-se como entidade de direito privado até o ano de 1988, tendo o seu orçamento mantido por anuidades e taxas, além de dotações da CEPLAC e verbas do Instituto de Cacau da Bahia e outros. Com a crise generalizada na região, as principais fontes de renda da FESPI foram se esgotando. Em 1988, o Estado começa, então, a arcar com as despesas da folha de pagamento. Nesse período, foi sancionada a Lei 4.816, criando a Fundação Santa Cruz – FUNCRUZ, Fundação de direito público vinculada à Secretaria de Educação.
Somente com a Lei 6.344 de cinco de dezembro de 1991, instituiu-se a Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, ainda como Fundação Pública, vindo a se alterar para a forma de autarquia, pela Lei 6.898, reorganizando a UESC em 18 de agosto de 1995. A estadualização da UESC foi aprovada pelo Conselho Estadual de Educação, através do Parecer CEE 055/93 de 25 de maio de 1993 e ratificado pelo Parecer 171/94, do então Conselho Federal de Educação, em 15 de março de 1994. O credenciamento como Universidade só veio no apagar das luzes do século XX, pelo Parecer CEE 089/99.
Em 1996, a Lei Federal 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) instituiu os novos parâmetros curriculares, dando novas configurações aos Cursos Superiores no País. Por conta disso, possibilitou maior flexibilidade e colocou os princípios de interdisciplinaridade e de indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão. Esses novos parâmetros, daí decorrentes, derrubaram a antiga organização curricular.

Daqui em diante, adentramos uma época que é de vocês, alunos aqui presentes, e também da geração mais nova de professores e preofessoras do DLA.
Então, agora, lanço mão daquele terceiro fio já aludido.
Entrei na Faculdade de Filosofia de Itabuna, em 1969, no Curso de Letras, ainda no tempo em que era um curso seriado. Tornei-me líder estudantil e fui presidente do Diretório Acadêmico. Vivíamos sob o regime da ditadura militar e eu tinha minha correspondência particular violada nos correios. Vários colegas foram perseguidos, a exemplo de Manoel Gomes São Mateus, que foi obrigado a passar uma noite inteira, sentado num vaso sanitário, num banheiro de péssima qualidade, tendo diante de si um soldado, com uma baioneta apontada para o peito dele, a fim de que ele denunciasse os demais colegas que se diziam comunistas. O professor Flávio Simões foi arrancado à força de sua residência e levado encapuzado para o morro de Pernambuco, em Ilhéus, a fim de confessar suas supostas ligações com os comunistas.
Data de tal época meu convívio com verdadeiros heróis e heroínas de meu tempo de estudante. A professora Litza Câmera propiciava encontros de estudantes matriculados em sua disciplina, em seu apartamento. As reuniões aconteciam com portas e janelas fechadas e não podíamos chegar nem sair em grupo. Entrávamos e saíamos de um a um, de mãos vazias, para não despertar suspeitas.
Quando me tornei presidente do Diretório Acadêmico, em parceria com o colega Nílton Lavigne, implantamos um curso pré-vestibular, o primeiro da Região. Nosso índice de aprovação era elevadíssimo e nossa equipe começou a ganhar respeito e fama. Fazia parte desse grupo: Jorge Araújo, Márcia e Mary Kallid, Marlene Muniz e eu. Fundamos a SEM ‒ Sociedade dos Elogios Mútuos. Dela faziam parte Osavaldo Ribeiro de Santana, José Gomes São Mateus, João Leal, Lourdes Santana, Adalto Sacramento, eu e outros. A SEM funcionava assim: a qualquer pessoa que pedisse a um de nós informações sobre qualquer pessoa do grupo, o interrogado deveria cobrir o pesquisado de elogios a mão cheia, quanto aos predicados na arte de ensinar. Passei a lecionar em vários colégios da Região, em Itabuna, Coaraci, Almadina e Itapitanga. Tão logo me formei, o professor Manoel Simeão da Silva me tornou seu auxiliar de ensino.
Quando a FESPI se instaurou, fui trazido por aquele professor de saudosa memória e lecionei Língua Portuguesa no chamado Ciclo Básico. Naquele tempo, ganhava-se pelo número de horas que se conseguisse dar. Eu dava 33 (trinta e três) horas/aula por semana e corrigia montanhas de redações. Cada sala do Ciclo Básico tinha, no mínimo 60 alunos. Não havia concurso: o professor titular da disciplina indicava seus auxiliares ao Departamento. Tais auxiliares eram acompanhados durante um ano, no fim do qual havia consulta aos alunos para se saber da competência, zelo e dedicação daquele auxiliar. Ai daquele cujos alunos depunham contra ele: era sumariamente dispensado. E tal avaliação acontecia numa plenária departamental. Eu segui carreira, passei a professor adjunto e depois a professor titular.
Depois, entendi de fazer curso de mestrado. A Secretaria de Educação não nos permitia fazer tal curso no mesmo Estado da Bahia, dizendo que era para evitar a endogenia. Tínhamos, então, que fazer isso em outro Estado. A FESPI me disse que não teria como me manter no Rio de Janeiro. E ainda mais: cortaria as minhas 33 aulas. E seu quisesse ir, teria de ir com meus próprios recursos, apenas manteria meu vínculo empregatício e eu deveria estar de volta em dois anos, sob pena de perder o vínculo. Fui e fiz o mestrado na base do sanduíche e coca-cola. No dia em que voltei, meus parentes não me reconheceram, tal a minha magreza.
Os tempos, no entanto, estavam sob os ventos das mudanças e fundei o Laboratório de Redação, do qual fui o primeiro coordenador. Tornei-me Chefe do DLA e depois, fui eleito diretor da Faculdade de Filosofia por duas gestões consecutivas. Tal cargo determinava que eu presidisse o Conselho Departamental da FAFI, fosse membro do Conselho Diretor da FESPI e membro do Conselho Diretor da FUSC.
Durante 20 anos coordenei, a equipe de correção das redações do Concurso Vestibular e, junto com a professora Margarida Fahel, elaborei a prova de Língua Portuguesa de tais concursos.
A luta pela implantação da universidade tornou-se acirrada e participava dela intensamente. Tal trajetória, no entanto, merece relato a parte. Tomei parte efetiva em todos os movimentos, deitei-me no asfalto num enfretamento com a polícia que foi chamada contra nós, porque estávamos em greve, impedindo o acesso ao campus. Fiz parte de comitivas e caravanas na busca de diálogo com as forças governamentais da Bahia, nos tempos de Waldir Pires, Nilo Coelho e Antônio Carlos Magalhães.
Finalmente, em 1988, o Estado assumiu a folha da FESPI e nós saímos de uma greve que durou sete meses. Não me perguntem como sobrevivemos, o que fazíamos para comer, pois não recebíamos salário algum. Lembro-me que, quem podia um pouco mais, dava cesta básica a quem nada tinha. Finalmente, em 1991, a estadualização aconteceu. Nessa luta, o DLA sempre esteve à frente de todas as batalhas. Seus professores se constituíram uma muralha humana, numa só fala, numa só voz.
Fiz parte da comissão que elaborou a carta-consulta para implantação da universidade. Foi um trabalho gratuito e intenso que durou meses a fio. Quando a nossa carta-consulta foi aprovada, foi extinto o antigo modelo ternário (reitoria, unidades, departamentos). Convoquei os professores da FAFI e, em plenária, decidimos encerrar as atividades da FAFI. Fomos em comitiva anunciar isso ao diretor geral da época, Altamirando Marques de Souza. Estava, assim, implantado um novo modelo administrativo da universidade nascente.
Em 1994, fui para Brasília, fazer Especialização em Educação à Distância. Na volta, montei um projeto de tal modalidade de ensino para a UESC. O diretor geral daquela época então me disse: “Ruy, se a educação presencial ainda é tão problemática, não vamos implantar EAD aqui. Mesmo, eu não creio nisso.” Tomou o projeto de minha mão e trancou na gaveta da mesa dele. Não me perguntem que fim levou tal projeto.
Em 1995, expedi uma carta-circular a 20 colegas, na busca de implantar na UESC um Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros. Nada havia de similar ainda no Nordeste, à exceção do Centro de Estudos Afro-Orientais, o CEAO, da UFBA. Dos convidados, 12 apareceram para a reunião. Debatemos a proposta e marcamos nova reunião para daí a uma semana, a fim de debatermos as linhas mestras de um projeto compartilhado de pesquisa. Apareceram apenas 8. E desses, permaneceram 5. O projeto levou um ano percorrendo os trâmites da UESC. Naquele tempo não se sabia ainda, por aqui, o que era um NEAB. Mas eu tinha feito uma segunda viagem a Brasília, a fim de aprender por lá e o projeto que fizemos foi muito bem estruturado. Os analistas não buliram numa vírgula sequer. E findo o percurso de um ano, quando finalmente o CONSEP aprovou a proposta, já estávamos com duas publicações em mãos: o Boletim Kàwé e o Caderno Kàwé. Mais tarde, tais publicações se fundiram e deram origem à atual Revista Kàwé.
Eu não faria tal percurso se eu não tivesse sobre mim a amizade benfazeja de Lindaura Brandão, Rita Fontes, João Arbage, Manoel Simeão da Silva, Maria de Lourdes Netto Simões, Margarida Cordeiro Fahel, Lizete Mujaes de Mendonça, Wanda Magalhães, Carmen Dolores Vieira Passos, Renée Albagli Nogueira e, mais tarde, Marialda Jovita Silveira e Maria Consuelo Oliveira Santos. Essas pessoas me ajudaram a cumprir aquilo para o qual eu vim fazer e tornar-me aquilo para o qual eu vim para ser, na minha trajetória de professor.
Eis um exemplo de como é verdade o ensinamento que fecha a hisatória de origem nagô, ainda há pouco narrada por mim: “Para vencer a morte, basta reinventar a vida”. Pois bem: venho de uma geração que soube reinventar a vida e, por isso mesmo, venceu a morte do ensino superior na Região Sul da Bahia. Venceu a falta de recursos, o abandono do Governo, a falência do cacau. Daqui em diante, já é o tempo de vocês. E agora, vocês me surpreendem, dando meu nome ao Centro Acadêmico de Letras da UESC. A princípio, confesso, cheguei a me sentir um pré-defunto, pois é costume de nossa cultura prestar tal homenagem apenas a quem já morreu. Dei-me a pensar, mas o pensamento não me acudiu. Dei-me, então a sentir e me lembrei de meu poema Verdade:

VERDADE


Tuas palavras pesam
de verdade,
sejam elas de raiva,
de ciúme, de amor.
Se tu és o meu igual,
o que dizes sobre mim,
na verdade,
isto eu sou.

            E se vocês estão dizendo que eu devo ser alvo de tamanha distinção, a mim, como sempre procedi diante de meus alunos, ouço e levo em consideração. E nessa consideração, me desfaço em agradecimentos, expressando o meu eterno reconhecimento e o penhor de minha gratidão.
            Obrigado, mesmo, de coração!

Ruy Póvoas
UESC/CAL, 23/11/11

Centro Acadêmico de Letras Prof. Ruy Póvoas/ Colegiado de Letras /Departamento de Letras e Artes/ Universidade Estadual de Santa Cruz